domingo, 20 de novembro de 2011

João


Não há razão aparente para este post, nem motivo, nem pretexto, nem efeméride ou qualquer outra espécie de argumentação ou justificação para to escrever. Não há factualmente mas escrevo-te na mesma. 
Sei que, muito provavelmente, não te importas, não queres saber e também por isso não me vou alongar acerca de como estou, o que estou a fazer, como me corre a vida. Honestamente, não me interessa a mim falar disso, também.
Sei que deixei de ter pretensões de ser alguma coisa de especial, para além de mera espectadora da sua própria existência. Ou então, talvez não. Acho que sim, que cresci e que entendo agora muitas das coisas que me dizias e que só agora me fazem sentido, porque se conjuga o tempo, o espaço e a predisposição para o entender. Acho que sim, que cresci, e sei disso quando percebo que não há certezas de nada e que a vida é um simples jogo de tentativa-erro e que mesmo que faças batota, és tu sempre quem tem que recomeçar as jogadas. 
Eu, a miúda caprichosa que sempre odiou tomar decisões irreversíveis, que sempre quis moldar o Mundo à sua maneira e sempre que as coisas não cabiam, as empurrou à martelada, mesmo que as danificando, com o único propósito delas passarem a caber, no matter what. Eu, agora já não miúda, já mulher. 
E não te escrevo este postl por ti- é mentira! Faço-o por mim (mais uma vez) porque penso muitas vezes em ti e não sei lidar com a forma como me portei contigo. 
Conheci-te há 27 anos e hoje não te conheço. Quero-te pedir desculpas. Não fui decente. Ponto.
Não garanto a mim própria que estou uma pessoa melhor. Não tenho pretensões de redenção e de começar tudo de novo de coração limpo porque a alma não se lava com lixívia. Não acredito que possa fazer melhor, talvez possa fazer diferente porque há coisas que nunca mais voltarão a ser iguais. 
Sabes quando tens uma escara? Dói que se farta e aquela merda até acaba por cicatrizar, ganha-se uma nova pele, mais dura normalmente mas também menos perfeita para nos lembrar que a ferida esteve lá e que a epiderme está agora mais forte mas menos virgem. E assim percebes que podes voltar a usar a pele como bem entenderes, mas nunca usarás a pele virgem de outrora, da forma descicatrizada de antes. Segues simplesmente em frente, com a pele exposta de novo em jogo, tentativa-erro em vista. 
Tenho saudades de ti. De ti em mim. De mim em ti. De nós. Nunca somos exactamente aquilo que julgamos: eu também era aquilo me projectava em ti. Aquilo que projectava que tu eras em mim. Aquilo que sentia que era para ti. E, nunca me ocorreu, que fui também aquilo que efectivamente eu era para ti, lá longe daquilo que eu sentia que poderia ser, sem a minha intervenção, sem ser sujeito de nada, mas simples objecto. 
Retenho na memória a conversa que tive contigo no dia em que morreu o meu avô (foste a primeira pessoa com quem falei depois das notícia) e eu sinto, que para além de tudo, gostas ainda de mim. Sinto-o, embora não saiba. Sem certezas, remember? Não importa, vivo com os meus sentimentos e faz-me bem sentir assim. 
Sei que gosto muito de ti. Por isso te queria pedir desculpas, sabendo que isto é o mais certo que escrevi neste e-mail.  E dizer-te que te desejo coisas boas sem fim, mesmo na distância e na ausência, mesmo com hiatos de tempo e de espaço, mesmo que neste momento não sejas mais que a projecção que faço de ti: aí longe. 
Aqui tens um bocadinho do meu coração: abro-o para ti como só o faço a quem amo. Gostava tanto que entendesses tudo. Espero. 

sábado, 5 de novembro de 2011

Poema # 1

No fundo, não há bons nem maus.
Há apenas os que sentem prazer
em fazer o bem
E os que sentem prazer
em fazer o mal.

Tudo é volúpia...

[Mario Quintana]

terça-feira, 18 de outubro de 2011

Wish list

Este Natal quero ir contigo a um pinhal, sentar-me no chão, partir uma pinha com a pedra mais pontiaguda que encontrar. E comer os pinhões, por fim.

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

O dia em que o Sérgio Godinho cantou só para mim

Encheu-me os olhos de um certo brilhosinho.

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Fita métrica emocional

Gosto de ti desde aqui até aí.

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

continuação

E enquanto ele me falava da pleura, de uma pleura doente, de uma pleura terminal, da pleura cancerígena que lhe irá roubar uma amiga, deixei de o ouvir.
Concentrei-me na definição de pleura, enquanto membrana que protege  um orgão, soldado corrompido, militar sem armas, combatente derrubado.
Então pensei que todos os corações deveriam ter uma pleura e o meu também. Uma membrana espessa o suficiente para nos proteger dos amores doridos, das saudades pontiagudas, das emoções minadas, da paixão cortante.
E enquanto ele falava- e eu ouvia-o ao longe- a minha pleura cardíaca, em agonia, morria devagarinho e deixava o perigo entrar.

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Giz

Durante anos gravava em mim o nome das pessoas de que gostava, como quem esculpe na pedra.Talhava de forma quase irreversível as pessoas em mim com a certeza de quem se tatua sem medo de arrependimentos. Com a certeza de quem acha que as pessoas quando chegam ao terminal das nossas vidas só trazem bilhete de vinda e não quererão comprar volta.
O tempo passou e percebi que há pessoas que vêm mas que voltam para o lugar de onde vieram, fora das nossas vidas, noutro Mundo longe do nosso.
E que depois custava horrores lixar os nomes das pessoas do nosso coração para as apagar. Doía-me os braços e, no fim, o coração ficava gasto. Limpo mas gasto.
Desde então decidi que não há nomes definitivos gravados em mim. Pinto-os a cal e todos os Verões sento-me à soleira da minha vida, contemplando cada pessoa com a preocupação de quem quer renovar as pinturas que valem a pena.
No terminal onde me encontrao chegam e partem viajantes. Alguns chegam, contam-me histórias dos sítios de onde vêm. Outros partem e levam histórias de mim. Outros ficam, e fazem a história cá dentro, comigo. E vão permanecendo em mim, sem ser preciso cravar o escopro na pedra. 
Comprei, enfim, paus de giz.

domingo, 28 de agosto de 2011

O dia mais feliz da nossa a vida a dois

Ligaste-me para o trabalho e perguntaste se poderia sair mais cedo. Querias levar-me até ao Alentejo para assistir à Aurora Bureal.
Quando me ri e te questionei sobre a impossibilidade de assistirmos à Aurora Bureal no Alentejo pediste-me que não intelectualizasse. E que me permitisse ser levada sem apregoar movimentos sufragistas de miúda mimada. Ri-me novamente e, do outro lado da linha, fizeste "o" silêncio que eu reconheço por ser diferente de todos os outros silêncios. O silêncio de quem se ri de esguelha. De quem se ri com os olhos, como só tu o consegues fazer.
Nesse dia eu não consegui sair mais cedo mas tu apanhaste-me à porta do prédio velho da cidade. Não fomos até ao Alentejo mas eu sabia que trazias a Aurora Bureal embrulhada no olhar, pronta para me ofereceres, enfim.
Era um fim de noite de Julho dum dia de semana banal. "O que conta é a intenção". E, intencionalmente, vivi a magia da Aurora Bureal contigo. Para ti.

sábado, 27 de agosto de 2011

Alma morta, alma morta

Houve dias em que me apeteceu fazer com o meu coração o mesmo que fazia com as mãos nos dias frios dos Invernos da minha meninice. Sentar-me em cima delas para as aquecer até que, ao fim de algum tempo, o calor deixava de se sentir e as mãos adormeciam.
Depois, divertida, brincava à "mão morta" e regozijava-me com a falta de sensibilidade e de controlo dos movimentos da minha mão. (Mão na terceira pessoa e eu narradora da minha mão). 
Houve dias em que me apeteceu colocar toda a carga do meu corpo sobre a minha alma para, com o pretexto de a aquecer, adormecê-la e poder brincar à "alma morta". E depois ir bater à tua porta.

domingo, 21 de agosto de 2011

Verdade ou consequência?



I'm not a person person. Durante anos achei que sim: que gostava de pessoas. Que gostava mais de pessoas que de animais. E, já para o fim, percebi que quanto mais conhecia os outros mais gostava de mim. Criei um grupo no facebook com esta frase e juntaram-se 2012 pessoas. 2012 é um belo número. Tenderá a decrescer, estou certa. 
Mas voltando ao fim- ao passado pintado de fresco- fartei-me de pessoas. O que é chato tendo em conta que a matéria-prima da minha profissão são esta espécime de seres vivos. Irei à falência em breve por saturação da dita matéria-prima. Não perco o sono com essa possibilidade.
As pessoas falam muito. Eu, inclusive. Falo demais e quando quero parar de me ouvir parece que não tenho qualquer controlo sobre a matéria e falo até me doer a cabeça, de tanto me ouvir. De me ouvir por dentro e por fora. Sim, por dentro. Se tapar os ouvidos e continuar a falar, as palavras surdas fazem-se ouvir à força como se debaixo de uma água de pensamentos altos e ensurdecedores. Uma voz interior maior. 
A verdade é que não é pelo facto das pessoas falarem muito que me aborrecem. É, essencialmente, por não dizerem nada de jeito. E por acreditarem que sim.  Percebi que a realidade não existe, existem meras especulações. 
A minha livraria preferida fechou. O Paulo logo dissertou horas a fio sobre as causas de encerramento da dita: que os donos eram dois burguesesinhos que trabalhavam para aquecer, que se endividaram porque quiseram ter uma livraria numa zona chique da cidade, que eram especialistas das palavras mas péssimos no que dizia respeito aos números. Quando inquiri o Paulo sobre a fonte daquelas afirmações, não me soube precisar. "Ouviu dizer por y, x e z que conhece o primo do cunhado da nora da empregada da ex-dona da livraria" e, entretanto, a verdade - que é o que é e não o que se vai ouvindo dizer aqui e ali- perdeu-se algures. E o mais grave é que isso não interessa nada para ninguém. As meias-verdades chegam-nos. Somos do século em que interessam mais as opiniões que os factos, as deduções/intuições/especulações que as evidências. 
Talvez porque as evidências são tramadas de se encontrar: dão trabalho que se farta. Talvez por isso as pessoas continuem a falar do que não sabem, sabendo que com isso matam as verdades. Vive-se em quintais de verdades plantadas por uns, regadas por outros quando a verdade é uma erva-daninha. Nasce por geração espontânea e é o que é: a verdade selvagem que nasce ao pontapé em terrenos baldios.
Lembro-me dele. O Gustavo gosta de dizer algumas verdades. As suas verdades. Diz-se directo. Mas foge quando sente que é hora de as ouvir. Falar dá jeito, ocupa espaços de silêncio, distrai. Ouvir os outros não tem graça, podemos não ter tempo de nos defender, ainda que na maioria das vezes não haja defesa possível porque- lá está- a verdade dos outros nem sempre coincide com a nossa. Passa a ser uma mentira, portanto.
Aborrecem-me as suas justificações, aborrece-me que ele precise tanto de se ouvir e precise que eu sirva de espectadora naquele monólogo monótono e entediante. Fartei-me dele. Como tantas outras vezes me fartei de pessoas que acreditam que a verdade delas é a verdade universal.
Não tenho pretensões de acertar nos atalhos da vida e nos temas de conversa discutidos nas mesas dos cafés. Gostava só que me apresentassem factos reais e não interpretações. Pode não parecer mas sou uma mulher de ciências.
Somos do século da supremacia das opiniões e das verdades absolutas instantâneas. Instantâneas? Nem de mousses, quanto mais verdades.
Neste jogo, prefiro sempre a consequência.

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Beijo

A tua língua é macia como uma concha polida esquecida na areia. Tocas-me nos lábios como o sal toca no mar, ao de leve, deixando um sabor molhado precisamente no sulco central do meu lábio inferior.
De mansinho, como uma criança que se abeira do mar para molhar os pés primeiro, a tua língua entra na minha boca.
E a minha, como o mar que ondula mais devagar- só dessa vez porque o mar reconhece as crianças que aprendem ooceano- recebe-te com um abraço oscular.
Depois os corações batem mais depressa e de repente- não mais que de repente- sentimos um tsunami dentro de nós. Lábios, língua, ar, saliva, pulsação, pálpebras cerradas. E um pouco mais de sol. Ou sal. 
Beijo (te).

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

Líbido linguística

Excitam-me os homens bonitos mas a perfeição estética enjoa-me.
Deliro com os homens com uma voz penetrante mas há Invernos que os deixam afónicos.
Não resisto a homens que saibam beijar com os lábios de forma penetrante mas há sempre dias de beijos fugidios.
Fantasio com homens com sentido de humor acutilante mas há alturas em que as minhas hormonas estão mais sensíveis e não toleram algumas piadas.
No entanto, a minha libido só se declina humildemente perante homens que saibam escrever bem.


domingo, 24 de julho de 2011

Exercitar o flirt

Antigamente era puro jogging. Flirtava como que corre às voltas num parque público de uma cidade. Com a abstracção de quem se projecta veloz e campeã a correr desalmadamente no meio da Natureza. Muitas vezes parava a meio da corrida: a visão da meta nem sempre justificava a "dor de burro". Entre a velocidade e a resistência, muitas vezes, a desistência de quem corre porque lhe apetece correr e não propriamente para alcançar a meta.
Cheguei, num dia de Março, à meta. Valia a pena a dor de burro, a arritmia, a transpiração, as faces rosadas.Valia a pena a dor nas pernas, nos pés. No entanto, não consegui subir ao pódio.
Deixei de correr durante muito, muito tempo. Anos talvez.
Hoje, contigo, um ligeiro sprint numa passadeira indoor. Nem eu nem tu damos pela velocidade ou pela necessidade de resistência. Não há a projecção da corrida no meio do verde nem a possibilidade da desilusão de nos depararmos com uma cidade poluída ao passar os portões do parque. Não há a visão do pódio porque não há nada para ganhar.
As coisas são o que são: uma passadeira numa divisão de um T2, uma janela para o Mundo e nenhuma meta no horizonte.
Aumenta a velocidade do tapete rolante. Por favor.

domingo, 8 de maio de 2011

Ero(tic)- Ero(tac)

Hoje seria o dia em que me enviarias uma sms a perguntar-me o que trago vestido e me pedirias que eu descesse o elevador lento do prédio, a tempo do semáforo não ficar verde e conseguir entrar no teu carro no instante momento em que me passasses à porta.
Seria o dia em que ficaríamos em silêncio até chegarmos à portagem de um motel: via verde na entrada, palavras silenciadas, apenas o som da tua mão no meu joelho esquerdo e a minha respiração mais alta que o que deveria, a denunciar a excitação que seria dos dois.
Depois levar-me-ias pela mão, tu à frente, e nas escadas de acesso à suite beijar-me-ias precisamente a curva do pescoço, uma pequena trinca no lóbulo da orelha e eu não oferecia resistência, porque este não seria um jogo para se ganhar. Depois, eu encontra-te-ia à parede, encostava o meu peito ao teu, o meu sexo ao teu e beijava-te os lábios como quem faz sexo oral.
Correríamos para a cama demasiado cliché para repararmos nela e estaria escuro lá dentro, apesar do fim de tarde ainda luminoso lá fora. Despia-te de conceitos, preconceitos e posconceitos e a única coisa que restariam seria lençóis de cetim desfeitos e húmidos, o teu arpão gasto do sal dos meus lábios, as tuas mãos cheias das ondas do meu corpo.
E eu seria uma sereia na mão de um pescador de fantasias e os meus cabelos chicotar-te-iam o peito, enquanto me navegavas à ré. Só depois de muito marear, depois de me alimentar de ti- rémora que sou-, depois de te alimentar, boiaríamos, enfim, exaustos nas palavras que poderiam ter sido ditas mas que preferimos amordaçar. Porque só o silêncio conserva segredos salgados. Segredos de quem navega com a audácia de não querer ancorar.
O que esperas? Não ouves? Tic-tac?

quinta-feira, 5 de maio de 2011

Verdade e consequência

A verdade é que ela não lidava bem com a rejeição. Não se tratou de a expulsar,  deixei-a onde ela queria estar e preferi levantar-me e vir-me embora. Ainda que vir para longe dela fosse uma incógnita, mas a ideia de a ter longe reconfortava-me. 
Sempre me dei mal com gente demasiado intensa. Gosto do meio-termo, do equilíbrio, de quem não ama em demasia nem odeia em demasia. Gosto de quem sabe gostar. Saber gostar é um dom.
Também os outros- soube depois- a deixavam estar mas ela não queria ser deixada estar. Deixavam-na sossegada, num ambiente contentor onde ela poderia continuar. Não era pena, não era maldade, era apenas o reflexo da saturação, era só um adeus. Dizer adeus requer coragem. Aceitar um adeus requer dignidade.
Mas ela não queria ficar longe no ambiente contentor e ia atrás, expunha-se ao frio e às intempéries, sujeitava-se ao ridículo e à pena, apenas porque não aguentava a ideia da rejeição.
Enquanto ela perseguia quem dela fugia perdia o quentinho do ambiente contentor. A possibilidade de acolher novas pessoas, de investir energia nelas, e cansava-se. Cansava-se muito.
E não percebia que o conjunto de pessoas que dela fugia se juntavam, inicialmente, com o pretexto único de fugir dela. Mas que, entretanto, criavam laços.
Ao fim do dia, findas as perseguições (ela cansava-se) juntavam-se num outro ambiente contentor, onde ela não conseguia entrar e ela já não era o tema de conversa. Apenas uma sombra incómoda. Um insecto aborrecido.
Ela continuará a correr, a perseguir quem lhe disse adeus só porque quis jogar à verdade ou consequência. Mas não estava pronta para a verdade e a consequência. Nem para jogar. Porque saber perder não é para todos.
E nesse sítio, enfim, onde estou eu (estás tu) as pessoas gostam moderadamente. E gostam longitudinalmente. E persistem no tempo e no espaço sem medo de rejeições. Porque gostar de forma equilibrada é um dom.

terça-feira, 26 de abril de 2011

Cacilheiro

De todas as coisas a que poderias dar o meu nome- uma espécie de borboleta, uma estrela, um cometa, um pirilampo, uma cor híbrida entre os anéis do arco-íris- gostava que desses o meu nome a um barco. Um cacilheiro, talvez. Para ter a capacidade de ligar as duas margens de um rio, que somos nós.

segunda-feira, 25 de abril de 2011

Olhos d'Água

Em Olhos d'Água digo-te que os que te olham são um rio e que os meus beijos são salgados porque os meus lábios são o mar onde essas águas vão desaguar.

Dói-dói

Desde a última vez que te vi, agarrei numa faca e, sem querer, abri um lenho num dedo. Sangrou demasiado para um corte involuntário e sem pretensões. Enquanto corria pela casa, em silêncio, à procura de uma torneira para colocar o dedo debaixo de água fria, o rasto de sangue vermelho lembrava-me que estou viva (também graças a ti).
A água e o sangue misturavam-se e quando consegui estancar a ferida, tapei-a com um penso rápido que não funcionou rapidamente como seria expectável, tendo em conta o seu nome. O penso- rapidamente- se ensanguentou e eu não percebia porque não parava de sangrar a porra do dedo (porque estou viva, sei agora).
Discuti, internamente, se depois do sangue parar de jorrar taparia o corte inestético com outro penso ou devê-lo-ia deixar cicatrizar ao ar.
Decidi-me pela última alternativa e olho, todos os dias de manhã, para o dedo magoado esperando a próxima vez que te vir para te apontar a fenda sísmica que ainda me rasga a pele e te pedir, como a menina que sou, que me beijes o dói-dói e digas que o sismo da dor já passou.

quinta-feira, 21 de abril de 2011

Chove o Mundo

"As últimas chuvas: fazem-me lembrar que, hoje e sempre, nem tudo aquilo que parece, na verdade, é. Há uma ideia primitiva, quase ilógica, que flasha o nosso interior quando nos lembramos das pessoas, e daquilo que elas, mesmo sem as conhecermos de mão para mão, podem representar para nós.

As últimas chuvas. Com elas, quando olhamos para nós vemos os outros, que nos sabem talvez mais tristes, mais incertos, mais débeis, incapazes de fazer vergar, sobressaltados, o nosso esqueleto perante as coisas do mundo, sempre resistentes (e irresístiveis) ao corpo. Possamos estar sentados, fisicamente débeis perante o mundo, e o mundo de nós se vê nele: somos frágeis, o mundo é frágil. Somos nós e o mundo, e nós, de regresso a nós, de passagem pelas coisas.

O mundo sabe de nós como se soubesse dele, e acolhe-nos na inevitabilidade das suas reservas quentes, da sua concha profunda. As cidades aquecem-nos, diria Quasimodo. O nosso sabor é bom, um sabor de bondade.

Esquece-se, porém, o mundo que somos maus. Muitos maus. Que cuspimos Dante e Maquiavel. Que somos o mundo, que estamos feitos em mundo, que somos, repito, maus. Que somos hominídeos. Que somos de pau. De células. De cromossomas frios. De restos do que fomos. Que somos inevitalmente, irremediavelmente, implicitamente nós. Carne fresca. Que somos - e como é bom e fresco! - maus de mundo, em mundo, no mundo."

Ginger-ale

Ter arritmia ou uma doença mental é habitar em pleno o nosso corpo. Habitar como partilhar a dor, habitar como sentir a pele rasgada. Imaginas que sais do teu corpo e ficas cá fora, a levitar, sem pistas físicas da tua presença: como será o mundo sem ser visto por dentro da caraça? O mundo por fora de ti com olhos, boca e nariz? Sem sentidos, sem percepção? Um conjunto de riscos encarnados, um ar de textura verde serra e um chão de pó azul?