domingo, 23 de novembro de 2008

terça-feira, 18 de novembro de 2008

November rain

O edifício era redondo como uma bola que rodava com ela dentro, num movimento circular e curvilíneo.
Lá fora chovia nocturnamente e ela saiu com o velho pretexto de comprar cigarros. Poderia não mais voltar, desparecer como tantas vezes lhe sugeria a memória.
Desceu e lá baixo ele esperava-a, sem saber bem o que esperava nem tão pouco que a esperava. Começou a chover e ela cravou-lhe um cigarro. O último, é engraçado como é sempre o último. Ele seguiu-a para perceber se a chuva apagava a ponta cigarrenta mas nunca desviou os olhos na direcção do cigarro. Travaram passas e travaram os passos um do outro, enrolados numa dança da chuva.
Entregaram-se aos beijos numa rampa que dava acesso ao parque de estacionamento, de frente para uma câmara de vigilância. Seios desnudados, mãos abertas à chuva. Corpos molhados por dentro.
Percorreram uma rua com nome de flor holandesa, cabelos encharcados, roupas coladas. Abrigaram-se num compartimento destinado ao lixo de um prédio, mas os únicos cheiros que sentiam era o dos corpos ofegantes e transpirados, mesmo fazendo frio lá fora.
Era uma segunda-feira redonda. Ela voltou para o escritório sem cigarros. Chovia em Novembro.

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

A febre do coração

Sim, amiga, o coração também tem febre. Devias sabê-lo, afinal deste-me anti-piréticos em meados do Verão quando o meu corpo era uma casa que depressa ficou vazia.
Perguntas-me como é que passa esta temperatura, esta prostração que sentes e que te deixa derreada, quase em delírio.
A receita é conhecida, vou-te apenas lembrar: começas por colocar esse enfermo em ambiente húmido- chora tudo o que há para chorar, transpira e deita fora toda a raiva e dor que sentes.
Tens máquinas de vapores? (Se precisares empresto-te a minha.) Deixa dilatar os pulmões do coração, para que tenha condições para respirar melhor.
Depois pensa noutras coisas, coisas frias e frescas como toalhas molhadas que se colocam na testa.
Deixa que, no fim, depois de verificares se a temperatura se mantém com termómetros digitais e palmas de mãos, venha outro alguém que encoste os lábios à tua fronte cardíaca e te confirme que a febre passou.
Gosto de ti.

domingo, 16 de novembro de 2008

Now

sábado, 15 de novembro de 2008

Urbano-depressivo

Tornaste-me tão dura, à força de me calcares, como as pedras da calçada de uma cidade em que arrastas a tua urbano-depressão, desprezando que foi lá que mandei plantar um banco de jardim para poderes descansar as palmas das mãos, onde me aprisionas.



quarta-feira, 12 de novembro de 2008

Próxima Estação (à Rita, com sabor a um chá com vista para o castelo)



Não sei se a decisão de viajar no banco da frente- aquele que tem uma dobradiça que recolhe contra a parede da carruagem- foi a melhor. Nem sempre os viajantes de primeira carruagem são os que mais depressa chegam ao destino. Está mais que provado.
Mas sou assim, gosto de ver o caminho em frente. Gosto de adivinhar o que se vislumbra depois da curva vertiginosa. Gosto de sentir o outro comboio em sentido contrário passar a alta velocidade e resvalar neste onde estou, naquele apito quase barulho estridente ao rubro.
Avisaram-me que se viaja melhor na última carruagem mas eu acho que essa só serve para os passageiros apressados que entram rés-vés na viagem, sem a firmeza que os meus passos preferem. Não gosto de ver o que fica para trás.
É preciso ser muito crente para se comprar uma viagem de ida e volta. Partir do pressuposto que se volta de certeza absoluta é para mim, mais que uma presunção, uma prova de profunda ignorância. Ingenuidade. Andei num comboio a 500 km/hora e quis, agora, parar numa plataforma qualquer só para descansar 2 minutos. Parar e vislumbrar comboios de alta velocidade, de ambos os lados do banco onde me sentei para descansar. Parar e vislumbrar. Sem sair do lugar. O movimento sempre me impeliu mas desta feita, pela primeira vez, sou-lhe passiva.

Daqui a nada embarco no próximo comboio. Já comprei bilhete de ida, como aliás nunca deveria ter deixado de fazer. A única certeza que eu tenho são todas as possibilidades que a vida me pode oferecer. Por isso a vida se esgota: ninguém vive mais que todas as possibilidades que há no Mundo para viver. E o Mundo, tal como as possibilidades, é finito. Depois há as probabilidades de se viver mais de que uma vez, mas isso vem a ser outra história.
O primeiro João que amei, um filósofo gorducho e de mosca no queixo, disse-me uma vez que viver a mesma coisa duas vezes era impossível. E citou-me qualquer coisa como, a mesma água não passa duas vezes por debaixo da mesma ponte. E, enquanto afagava o mosquito de Sócrates tatuado no ombro robusto, deu uma risada e exclamou "Quem quer viver a mesma coisa duas vezes na mesma vida, quando há todas as outras possibilidades para se descobrir, gastar e viver?". Perdi o João, numa estação qualquer distante, onde andaremos sempre a tentar embarcar em sentidos contrários. Caminhos descruzados.
Agora respiro fundo. Seguro com veemência o bilhete (nunca mais arrisco viajar sem ele, a multa é cara demais). Quero voltar a viajar a 500 km/hora, sem desculpas para descansos ou gazeta. "A melhor maneira de viajar é sentir". Reitero. E tu, sente-lo?

I still remember our last kiss

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Ao Miguel, com o devido atraso


We're all gonna die.

terça-feira, 4 de novembro de 2008

sábado, 18 de outubro de 2008

Music Box




Ela tinha uma bailarina nos olhos. Que dançava, em movimentos sincronizados, circulares, fazendo companhia às outras meninas. As dos olhos.
Os olhos eram cor-de-mel e os movimentos da dança da bailarina eram doces. Pontas, bicos de pés, graciosos rodopios sobre o próprio corpo.
Ela precisava de movimento. Não gostava do sossego, da paz. Precisava do movimento, ainda que fosse discreto, sob a forma da dança da bailarina que morava nos seus olhos.
E a bailarina dançava e dançava sem parar. Rodopiava no ar, entre os castelos que ela construia. Ficava tonta de tanto dançar. Quase que embriagada.
Um dia, a corda da caixa de música acabou. E a bailarina parou. E os seus olhos deixaram de ser o palco da dança fugaz. Os castelos dissiparam-se. A bailarina descalçou as sapatilhas e os olhos deixaram de ser cor-de-mel e doces. Agora, são apenas os olhos dela. Vazios de ballet.

sábado, 11 de outubro de 2008

Desafio ao Miguel (dou-te o mote e tu dás-me a volta?)


Sentara-se no anfiteatro da universidade que não era a dela. Aliás, há uma meia dúzia de anos que deixara de estudar e a ideia de ir assistir a uma aula de Design, parecia-lhe uma lufada de ar fresco, a ela que era de uma área de estudo tão antagónica.
Assim que entrou na escola antiga e com humidade nas paredes e olhou em redor, arrependeu-se de ter acedido ao convite. Um conjunto de alunos desfraldados ainda com acne (já não existem veteranos académicos de charme?) e um bando de miúdas de jeans, ténis e fios punks, fizeram-na sentir-se absolutamente desadequada.
Esgueirou-se para o fundo da sala, perante os olhares críticos dos miúdos que comentavam o ar executivo e desfazado, quem sabe até, confundindo-a com uma professora. Apeteceu-lhe fazer um comentário mordaz em voz alta mas sucumbiu aos apelos misericordiosos da amiga que a tinha trazido.
Tirou da pasta uma "Exame" e decidiu que iria lê-la até ao fim. O professor entrou e ela nem sequer levantou os olhos para o fixar. A voz dele como pano de fundo, grave e pausada. O silêncio recalcado da boa centena de estudantes que enchiam o anfiteatro: canetas a cairem no chão, tosses ocasionais, o barulho lá ao fundo do motor do Datashow. No seu horizonte visual, apenas as páginas da "Exame" e o tempo de duas horas a passar muito rapidamente.
A aula termina sem campaínha, apenas porque alguém, talvez o professor, se tenha lembrado de olhar para o relógio ou quem sabe, talvez, tivesse em si um relógio de ponto interno. Todos se levantaram em desordem e ela deixa todos saírem sem levantar os olhos da última página.
Quando o silêncio se instala, fecha as páginas da revista, enrola-a e arruma-a, novamente na pasta de couro preto.
Levanta os olhos, ainda a tempo de fitar o professor a sair da sala, a esgueirar-se pela porta, pasta de computador na mão.
Dele lembra-se apenas da figura robusta e da nuca cheia de cabelos mesclados. Aposta, internamente, como de certeza que tem cãs brancas. Voltará, mais tarde, para se certificar.

quinta-feira, 11 de setembro de 2008

Terror (isto)



Este fim-de-semana vi um documentário acerca do 11 de Setembro. Falava-se nos suicídas do atentado. Não os suicídas muçulmanos, que defendiam uma causa religiosa fundamentalista. Mas, sim, os suicídas que trabalhavam no World Trade Center e que tiveram que escolher entre morrerem queimados e asfixiados ou saltarem pela janela dos seus escritórios.
Parece-me, a mim, que em situação de morte iminente, cabe ao ser humano reclamar o seu último reduto de humanidade: o poder de decisão. E se os factores externos têm o poder de nos pressionar, de nos limitar o leque de opções, a escolha será, em última análise, um direito que nos assiste.
Nestes últimos meses, a morte esteve perto: para mim e para ti. Falo-te da "morte emocional", que é muito mais derradeira que a física. E sei que compreendes bem. E se, neste momento, te sentires uma zombie, uma morta-viva deixa que te pergunte: preferes morrer queimada e asfixiada ou alinhas num voo picado para a morte?
Eu, que morri também emocionalmente nos últimos meses confidencio-te a minha conclusão: morrer por morrer, morro consciente da liberdade plena de voar sem asas. De sentir taquiardia e aproveitar os últimos segundos de uma vida plena de humanidade. De, como diz o Pedro Abrunhosa num dos seus brilhantes poemas, "ser dona do céu". Pensa nisto. Miss you.

terça-feira, 5 de agosto de 2008

Morr(eu)


Já toquei na morte algumas vezes. Sei o que é estar-lhe à porta. E sei que tudo pode acabar numa idiota batida de chapa de um carro ou num aperto mais forte de uma porcaria de um músculo, cardíaco que seja. Tenho essa noção, todos os dias quando acordo. Sei que há coisas que não se pode adiar, sem que andamos cada dia mais próximos do fim do prazo de validade.

Talvez, por isso, goste de viver tão intensamente e neste ritmo frenético que muitos não conseguem compreender. o meu escritor preferido dizia que "O amor não se adia".

Eu acho que a vida não se adia. Nascemos sozinhos. Morremos sozinhos. Pelo meio, aproveitemos os outros. Vivamos, experimentando as coisas boas e más. Aprendendo as lições, errando as vezes que forem precisas e as que não forem precisas mas que sejam inevitáveis. Errando porque temos que errar, porque precisamos de errar, porque queremos errar, até.

Mas vivamos sem medos dos outros porque os outros estão lá no meio, apenas. Os outros ajudam, amparam, acompanham mas os outros nunca serão nós. Os outros, demasiado importantes, não são os outros. Somos nós nos outros São os outros um bocadinho em nós.

Confundimo-nos Nascemos sozinhos. Morremos sozinhos. Já aqui disse. Vou para longe este fim-de-semana. Contra a aprovação dos outros. Contra o que diria o bom senso, os bons costumes, contra o que seria certo e esperado eu fazer. Quando morrer, morro sozinha mas vou de barriguinha cheia. E o que eu já vivi, ninguém me tira.

Egoísta, eu? Não, tenho apenas a noção que vivemos intimamente, interiormente e inrinsecamente sós

domingo, 20 de abril de 2008



Uma estrada sem alcatrão
Um GPS sem sentido de orientação
Uma rede a baloiçar
Uma serra quase à beira mar
Uma cancela que se tem que abrir
Gargalhadas sempre a explodir
Um chá que se partilha
Um mapa que se palmilha
Um canção que se adultera
Um relógio sem tempo de espera
Um carrocel no lençol
Chuva picada em vez de sol
Demonstrações públicas de carinho
O doce sabor de se fazer caminho
O chão de pedra molhado
Mais que um cigarro fumado
Um espelho a reflectir sedução
Mil orgasmos numa só expressão
O crime num bago de uva
A redenção desta chuva
Um cheiro que se torna familiar
Uma sede infinita de se provar
Passados absolutamente escancarados
Futuros possivelmente projectados
Dar vida a uma cama de dossel
O sabor de um sol de mel
O reconhecimento de um beijo
A redenção do desejo
Cabeças tapadas por mantas
Estas recordações: tantas.
Já não se estar tão sozinho
Partilhar um copo de vinho
Uma casa, uma serra e uma mó
E não deixar um instante de estar
só.

domingo, 16 de março de 2008

Ele decidira que terminara, sem sequer ter começado. Não a queria para nada. Não havia lugar para ela na vida dele: horários trocados, caminhos trocados, ideias trocadas, sentimentos trocados, medos trocados, propósitos trocados, trocas trocadas. Ele sentia-se idiota: afinal, a troca de nada se deixara envolver.
Ela sabia-o seduzir Ela sabia que o sabia seduzir e sabia-o fazê-lo com uma mestria sedutora. Uma ideia a consumia: não se deixar envolver. Quando sentia que alguém lhe ocupava a mente mais tempo que o que se permitia, colocava em pratica a infalível teoria da substituição: "Não há como uma paixão para curar outra".
Ele acreditava no poder redentor (redutor?) da paixão: no calor da envolvência: na possibilidade de procurar o amor pela única razão dele aparecer sem aviso de recepção. Acreditava e enchia os pulmões de ar- como para ganhar fôlego- de cada vez que a beijava.
Ela rejeitava o beijo: aquele beijo. Em bom rigor, o beijo dele era o motivo- mesmo que inconsciente- para ela sentir que não resultaria. Abominava o beijar arejado, como quem sopra um balão. Faltavam ali elementos: língua, saliva, tacto. Isso facilitava, de longe, o não envolvimento."Love is a game"- escrevera-lhe ele na contra-capa de um livro que lhe oferecera. Para ele partilhavam o essencial: o gosto pela leitura do mesmo escritor de eleição. "Asfixia-me"- implorara-lhe um dia, a injectar-lhe um beijo cheio de ar. Ele queria-a: corpo e alma, sem pudor mas com entusisamo refreado (uma espécie de premonição). Sentia orgulho na sua companhia: tentava abraçá-la enquanto esperavam que o semáforo dos peões ficasse verde, abria-lhe a porta cada vez que ela queria passar, punha-lhe a mão em cima dos ombros enquanto caminhavam na calçada.
Ela não cedia ao prazer do sexo, mesmo que ele garantisse verbalmente que podia ser encarado como ocasional e descomprometido. Percebia nos olhos dele a não concordância com as palavras: sempre abominara os malditos românticos.
Ele tentava "cortar-lhe" as jogadas com as cartas mais pequenas do trunfo. Aqueles pequenos gestos que denunciavam o sentir pela alma. Mas fora o corpo que o fizera decidir-se a pôr termo aquela amizade coloridamente desigual e desequilibrada.Ela não se importava. Jogava aquele jogo como quem joga uma partida de krapô. Dois homens: dois baralhos: dois jokers. O trunfo era copas e era ela quem tinha o ás, rei e valete. "Rei morto, rei posto"- pensava a dama.
No fim, sobrava-lhe a ela apenas o ás de copas (essas danadas!). Nada a fazer: ambos perderiam naquele que era o prazer de jogar pelo jogo. Rei de espadas atiradas à terra, gastas de tanto lutar.