terça-feira, 26 de abril de 2011

Cacilheiro

De todas as coisas a que poderias dar o meu nome- uma espécie de borboleta, uma estrela, um cometa, um pirilampo, uma cor híbrida entre os anéis do arco-íris- gostava que desses o meu nome a um barco. Um cacilheiro, talvez. Para ter a capacidade de ligar as duas margens de um rio, que somos nós.

segunda-feira, 25 de abril de 2011

Olhos d'Água

Em Olhos d'Água digo-te que os que te olham são um rio e que os meus beijos são salgados porque os meus lábios são o mar onde essas águas vão desaguar.

Dói-dói

Desde a última vez que te vi, agarrei numa faca e, sem querer, abri um lenho num dedo. Sangrou demasiado para um corte involuntário e sem pretensões. Enquanto corria pela casa, em silêncio, à procura de uma torneira para colocar o dedo debaixo de água fria, o rasto de sangue vermelho lembrava-me que estou viva (também graças a ti).
A água e o sangue misturavam-se e quando consegui estancar a ferida, tapei-a com um penso rápido que não funcionou rapidamente como seria expectável, tendo em conta o seu nome. O penso- rapidamente- se ensanguentou e eu não percebia porque não parava de sangrar a porra do dedo (porque estou viva, sei agora).
Discuti, internamente, se depois do sangue parar de jorrar taparia o corte inestético com outro penso ou devê-lo-ia deixar cicatrizar ao ar.
Decidi-me pela última alternativa e olho, todos os dias de manhã, para o dedo magoado esperando a próxima vez que te vir para te apontar a fenda sísmica que ainda me rasga a pele e te pedir, como a menina que sou, que me beijes o dói-dói e digas que o sismo da dor já passou.

quinta-feira, 21 de abril de 2011

Chove o Mundo

"As últimas chuvas: fazem-me lembrar que, hoje e sempre, nem tudo aquilo que parece, na verdade, é. Há uma ideia primitiva, quase ilógica, que flasha o nosso interior quando nos lembramos das pessoas, e daquilo que elas, mesmo sem as conhecermos de mão para mão, podem representar para nós.

As últimas chuvas. Com elas, quando olhamos para nós vemos os outros, que nos sabem talvez mais tristes, mais incertos, mais débeis, incapazes de fazer vergar, sobressaltados, o nosso esqueleto perante as coisas do mundo, sempre resistentes (e irresístiveis) ao corpo. Possamos estar sentados, fisicamente débeis perante o mundo, e o mundo de nós se vê nele: somos frágeis, o mundo é frágil. Somos nós e o mundo, e nós, de regresso a nós, de passagem pelas coisas.

O mundo sabe de nós como se soubesse dele, e acolhe-nos na inevitabilidade das suas reservas quentes, da sua concha profunda. As cidades aquecem-nos, diria Quasimodo. O nosso sabor é bom, um sabor de bondade.

Esquece-se, porém, o mundo que somos maus. Muitos maus. Que cuspimos Dante e Maquiavel. Que somos o mundo, que estamos feitos em mundo, que somos, repito, maus. Que somos hominídeos. Que somos de pau. De células. De cromossomas frios. De restos do que fomos. Que somos inevitalmente, irremediavelmente, implicitamente nós. Carne fresca. Que somos - e como é bom e fresco! - maus de mundo, em mundo, no mundo."

Ginger-ale

Ter arritmia ou uma doença mental é habitar em pleno o nosso corpo. Habitar como partilhar a dor, habitar como sentir a pele rasgada. Imaginas que sais do teu corpo e ficas cá fora, a levitar, sem pistas físicas da tua presença: como será o mundo sem ser visto por dentro da caraça? O mundo por fora de ti com olhos, boca e nariz? Sem sentidos, sem percepção? Um conjunto de riscos encarnados, um ar de textura verde serra e um chão de pó azul?